 |
Visão traumática |
Há pouco fui fazer um chocolate quente e por uma fracção de segundo, arrepiei-me toda: pareceu-me que o leite tinha uma nata, uma malfadada de uma nata. Afinal era só um grumo de chocolate - mas bastou para me dar a volta ao estômago e disparar-me, em grande velocidade, para o passado. As natas do leite são coisa cada vez mais rara hoje em dia (para mim, pelo menos) talvez devido ao hábito de aquecer as bebidas no microondas, ou talvez porque lá em casa aprenderam depressa que as natas só tinham paralelo, no quesito de me horrorizar, obrigar-me a fazer caretas e entrar em modo gremlin, com a clara do ovo (long story, um dia conto a saga). Depois de muito blheeeeeec, de muita cena, de muito "é só uma nata, espera que eu filtro o leite, mas é preciso esse escândalo todo?" enquanto eu saltitava em pânico à volta da mesa, acharam mais prudente deixar-me tomar o pequeno almoço e lanchar da maneira que me parecia melhor. Leite frio com Ovomaltine acompanhou muitos dias da minha vida. O pior é quando lanchávamos fora, muitas vezes em casa de uma das minhas tias: ela servia sempre bolo de Ançã quentinho com manteiga e café e eu, que não gostava lá muito de comer, achava a maior das graças àquilo tudo - talvez pelo cheiro do bolo acabado de cozer, talvez pela companhia ou pelo ar puro que me abria o apetite. E a tia oferecia-me café, coisa que lá em casa, temendo ataques de mau génio, não se dava às crianças sem mais aquelas. Por mais que se insistisse que não era café, mas Mocambo, teimavam comigo que a hipotética cafeína tinha de ser cortada com leite. Leite acabadinho de ferver...e com nata. Eu tentava fazer cerimónia mas era mais forte do que eu. Lá acontecia o arrepio, o blheeec, o nata não, nata não, nata não, com o meu irmão e os meus primos a fazer coro por contágio "o quêêê, se o leite tem nata também já não o bebo!" apesar dos avisos " modera-te senão os teus primos também não querem lanchar!" e a outra tia "deixe lá, se ela não quer a nata, não quer a nata!" e já não sem quem a dizer que encontrar nata até não era mau de todo, só para nos arreliar ainda mais, o que lançava um blhec geral. Acabei por ganhar e o Mocambo ficou, a bem do sossego, que para desatinos já bastavam os tios a discutir futebol e política...
Tenho para mim que obrigar pessoas a beber tal coisa devia ser considerado uma eficaz e atroz forma de tortura, de deixar os chineses envergonhados.
Ainda hoje prefiro acompanhar bolos e coisas semelhantes com café preto, e não consigo olhar para um galão sem que me assalte a tentação de perguntar ao empregado de mesa "é sem nata, não é?". Natas só batidas, em chantilli ou em pastéis...